Monday, 1 November 2010

A hesitação em decidir: prazer e risco futuro


Decisões, escolhas. Dois caminhos a se seguir. Mesmo quando as duas opções são viáveis a escolha ainda é difícil. Na verdade, é justamente quando o certo e o errado não estão prescritos, cravados em pedra, é que a decisão se torna tão mais ardilosa, dura.

Este é o caso de nossa paciente. Recém diagnosticada com uma doença auto-imune, lúpus, é aconselhada a não engravidar. Esta recomendação, a priori, feita antes mesmo de sabermos da intenção da paciente em engravidar, vai contra os preceitos de uma boa relação médico-paciente, como assim veremos.

É relevante discutirmos se a conduta de tal médico foi correta ao abordar uma já fragilizada paciente que – acreditamos -  acabara de receber um diagnóstico de uma doença crônica, e, portanto, eterna, com uma informação talvez desnecessária - em um primeiro momento – sobre uma possível e teórica gravidez, mesmo porque uma gravidez em pacientes lúpicas, consideradas de risco, pode ser acompanhada a termo com sucesso como já expresso anteriormente.

No entanto, a fruta proibida é tão mais gostosa: apesar de não termos dados confirmando a vontade da doente de engravidar, a proibição do fato pode ser o estopim para que o desejo de engravidar aflorasse. Afinal, o que seria um improvável e distante risco futuro se comparado com o prazer de uma gravidez – que para muitos é a consolidação da realização de uma mulher -, ainda mais hedonista justamente por ser de alto risco? Ou seja, mesmo se nunca houvesse desejado um filho antes, por agora ter sido aconselhada, mesmo que precipitadamente, a não engravidar, seu desejo de ter um filho (o prazer futuro) pode suplantar o risco iminente de uma gravidez de risco.

Em contrapartida, se levarmos em conta os ideais ascéticos, nossa paciente permanecerá não-grávida (padronização de comportamento). Desejará um filho, uma gravidez, mas suprimirá sua vontade. Inúmeras razões poderão levá-la a esta “pureza”: o saber médico, seu amor de mãe (já que doenças auto-imunes podem ser hereditárias), auto-punição, auto-piedade. Até onde este ideal ascético chegará? E se nossa paciente fosse uma diabética e as recomendações fossem a não ingesta de açúcares? E uma hipertensa com a diminuição da ingesta do sal? Abster-se-ia ela de tais prazeres mundanos e tão pouco controláveis? A intervenção médica nestes hábitos de vida teria o mesmo valor do que a interferência em uma gravidez, que tem uma significância psicossocial indiscutivelmente maior? Até onde vai o poder decisório médico?

É justo assumir que quem discrimina a suposta gravidez da lúpica enquanto de risco é o saber médico. De acordo com Vaz, quando responsabilizamos alguém pelos sofrimentos que experimentamos, supomos que outra coisa poderia ter sido feita e que esta ação, a verdadeira, estava ao alcance de sua vontade. Logo, qualquer posição adotada pelo médico será passível de críticas pela paciente se este não estabelecer com esta, desde o primeiro momento, uma relação de confiança e responsabilidade, a informando de sua condição e as possíveis e prováveis consequênciais.

O cerne da questão não é ser ou não ser, engravidar ou não engravidar, mas quem dita as regras deste jogo. Quem deve administrar o capital-saúde dos nossos pacientes?

Devemos pensar no capital-saúde como uma dívida, já que mesmo quando somos saudáveis, há predisposição a doenças genéticas e outros inúmeros acasos incontroláveis que espolia este nosso capital. No caso de nossa paciente, o lúpus, doença auto-imune de etiologia deveras sombria, é sua dívida que, como afirma Vaz, é impagável. O máximo que podemos fazer é esperar sua inevitável cobrança. Então, como que na posição de médicos, em uma paciente cujo diagnóstico já está cimentado e em cujo prognóstico não se tem uma cura, almejamos algo diferente do que o esperar? 

Com o conceito de fator de risco, há uma transformação da experiência do adoecer, tanto para o doente quanto para a sociedade – e principalmente para o saber médico. Na verdade, hoje, todos os não-doentes são classificados como quase-doentes pela medicina preditiva, já que todos podemos possuir alguma predisposição genética, algum comportamento de risco, estamos no limiar do saudável. Isto causa um desaparecimento gradual entre a distinção do doente para o saudável. A óbvia conclusão: o saber médico, o próprio médico, torna-se uma figura central na padronização do comportamento, ou seja, estabelece diretrizes as quais devemos seguir se quisermos ter uma melhor qualidade de vida – parâmetro de qualidade altamente subjetivo

O conceito de fator de risco pode ser mais um mecanismo de apaziguar as angústias do indivíduo diante de sua impotência em não poder controlar sua vida e morte. A gravidez de nossa paciente traz a impotência do saber médico diante das angústias de nossa paciente. Angústias estas que não foram bem administradas pelo seu médico. Aprendemos com este caso que, independentemente do diagnóstico ou prognóstico de nossos pacientes, uma relação de respeito e confiança com estes é a base de qualquer terapêutica, em qualquer situação, de qualquer paciente.

Parte integrante do Seminário Integrado de Relação Médico Paciente II - UNESA RJ 2010.2 
Curtiu? Procura um camarada chamado Paulo Vaz. Ele vai te explicar melhor. (Um Corpo com Futuro)

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