Saturday 3 April 2010

Auto-engano

Quem já leu, sabe. Quem não leu, procure se informar. É verdade que todos nós mentimos. Mas o mais assustador é o quanto nós mentimos para nós mesmos e o impacto que isso tem na nossa vida: este é o auto-engano.

O livro do Eduardo Giannetti aborda este tema de quatro ângulos diferentes:

1) O que é o auto-engano e no que ele difere da ação de enganar o outro?
2) Por que o autoconhecimento é um desafio tão difícil para o ser humano e quais as motivações básicas alimentando a nossa propensão espontânea para o auto-engano?
3) Como é possível para uma mesma pessoa enganar-se a si própria? Como nos desincumbimos de proezas como crer no que não cremos, mentir para nós mesmos e acreditar na mentira ou remar de costas rumo a um objetivo?
4) Qual o lugar e o valor do auto-engano na vida prática, tanto sob a ótica dos projetos, desejos e aspirações de cada indivíduo em particular, como na perspectiva mais ampla da nossa convivência em sociedade complexas?



A lógica do auto-engano - ou algumas pinceladas pertinentes.


O que precisamos entender de início é que o auto-engano é um fenômeno intrapsíquico, ou seja, ocorre dentro da minha mente. Tentar forçar o auto-engano é como tentar obrigar alguém a acreditar em algo: não rola. Taí a inquisição que não me deixa mentir. A carne cede, mas ninguém pode afirmar o que se passa na mente. Para o bem ou para o mal, quem põe na cuca acreditar em alguma coisa não pode ser detido. A doutrinação ideológica, a tentativa de forçar a fé - que se faz sempre tão presente junto ao lado perdedor, inferior, no final das contas, nunca dá certo, não é mesmo? Esquecemo-nos do princípio Newtoniano. E Marco Aurélio já dizia "Nunca alimente a esperança de tornar realidade a República de Platão [...] Quem pode mudar a opinião dos homens? E, sem que mudem seus sentimentos, o que se pode fazer se não transformá-los em escravos relutantes e hipócritas?".

Mas veja bem, queridos, querer não é poder. A mente humana é capaz de façanhas inimagináveis. Porém se quero acreditar em alguma coisa - ou deixar de acreditar em outra qualquer - o máximo que posso fazer é buscar mecanismos indiretos que me levem a este caminho. Vou tentar ser mais clara.
Processos involuntários não são passíveis de deliberação direta, mas mesmo assim podem ser manipulados - facilitados ou indiretamente provocados. Existem dois caminhos para se chegar lá. O Transporte Situacional, em que você identifica emoções em outras experiências que empatize um contexto externo que o leve a torná-lo suceptivel, como por exemplo um bom filme ou peça de teatro; e o Mergulho Introspectivo, no qual você busca nas suas suas próprias experiências vividas estas emoções, ou seja, um contexto interno. Aí você para e pensa, 'tá, legal, mas pra que isso se presta?' Exatamente para sensibilizar estes mecanismos indiretos do auto-engano que estavamos comentando agora. E como Giannetti diz: "A magia do trasporte situacional na arte [...] não só de nos fazer esquecer e sentir, mas de nos fazer esquecer de que estamos esquecendo e de nos fazer não sentir que sentimos sem sentir."

Quem nunca negociou com o despertador seus 15 minutinhos a mais? Pois é. Sono é hábito. Mas quando a rotina se quebra, o relógio de dentro entra em descompasso com o relógio de fora. É aí que as negociações começam. Quando o compromisso é externo (trabalho, aula, ...), os outros nos protegem de nós mesmos. Mas quando o compromisso é interno (aproveitar melhor o dia), aí o bicho pega.
A logística do despertador longe da cama pode até funcionar, mas quando ele toca, começam as negociações: "o que são mais 15 minutinhos?". O simples fato de que uma promessa precisou ser feita é sintomático - ela indica que pairam dúvidas quanto a sua realização. Se toda manhã minhas promessas de dormir só mais 15 minutinhos fossem falsas, eu não me enganaria por muito tempo. Mas nem sempre é assim. O grande álibi do auto-engano é que algumas das vezes eu de fato cumpro o que prometi a mim mesma - a promessa é razoavelmente verdadeira no momento que foi feita, mesmo que depois se torne falsa. Ou seja, ela precisa ser verdade para se tornar mentira, entenderam?

Ninguém joga para perder. Sonhar e acreditar no sonho é o sal da vida. O problema não é sonhar e apostar, mas no que sonhar e apostar. A pessoa movida por uma crença, por uma paixão, vive um momento de máxima força e fragilidade: suas certezas iluminam e ofuscam. Eis a estrada para o auto-engano. O homem com sua malícia e a natureza com sua inocência. E assim começam as justificativas. Afinal, duvidar dói. Não se iludam: "A força de acreditar [..] faz milagres. Mas não é critério de verdade".

Nós somos seres parciais. A subjetividade humana tem dois pólos extremos, opostos e complementares. A imparcialidade radical e a parcialidade excessiva. Nietzsche diz que "Homens de natureza vivaz mentem só por um momento: logo em seguida eles mentem para si mesmos e ficam convencidos e sentem-se honestos".  No final das contas, a hipocrisia é um tributo que o vício presta à virtude. Claro que há entre nossos pólos a dissimulação social: o hipócrita interior que nos habita em segredo é um animal diferente do hipócrita social que nos ronda e assedia. E ninguém quer conviver com uma imagem repugnante de si mesmo, não é?


"é difícil ter visões comendo merda"

Mentira e auto-engano são conceitos bem distintos. Como já pincelei aqui para vocês, auto-engano pressupõe uma verdade, ou pelo menos uma crença. Recomendo que busquem o livro do Eduardo Giannetti e leiam. E não surtem, todos nós nos enganamos todos os dias - é um mecanismo adaptativo que nos permite funcionar. Acredite, você não está sozinho.